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POPPER NO VAREJO, WITTGENSTEIN NO ATACADO

POPPER NO VAREJO, WITTGENSTEIN NO ATACADO


Popper no varejo, Wittgenstein no atacado

fonte: portal brasileiro de filosofia

Algumas pessoas imaginam que a filosofia tem algo a ver com os manuais de boas maneiras da Danuza Leão. Mas não tem. O filósofo polido demais e incapaz de se irritar deveria desconfiar desse seu comportamento, talvez ele não seja um bom filósofo. Esse é um aviso que vem desde Heráclito, de gênio forte e, como sabemos, filósofo de mão cheia. Por outro lado, desde Sócrates, filósofos incapazes de irritar alguém, de provocar mesmo, corajosamente, nunca foram glorificados como autênticos filósofos.  Os filósofos vivem intensamente suas doutrinas

As disputas em filosofia são necessárias – e a veemência e o ardor da disputa fazem parte do fato de que as discussões filosóficas não são “meramente sobre idéias”. São de fato e principalmente sobre idéias e discursos – o que os filósofos possuem como o de mais pessoal. Quem diz, eu atacado idéias e não pessoas, ou está mentindo e é hipócrita, ou não entendeu nada de filosofia. As idéias da filosofia são todas pessoais, pois direta ou indiretamente eles podem mudar a vida de cada um de nós. Os filósofos são os que sabem disso de modo apropriado, e por isso se exacerbam na defesa e ataque do que podemos contar e argumentar. Wittgenstein chegou a dizer que um filósofo que nunca entrou numa disputa dura por suas idéias seria como um boxeador que nunca subiu ao ringue.

Ora, por falar em ringue, foi exatamente para este lugar que Karl Popper e Wittgenstein quase se deslocaram na primeira e única vez que se encontraram, e por poucos minutos. Popper sempre foi um polemista ardoroso e adorava uma contenda. E se confiarmos nas observações de Bertrand Russel sobre Wittgenstein, que dizia “vou ver se Deus chegou” ao avisar a esposa que iria buscar seu jovem amigo na estação, o quase-pugilismo (ou esgrima – por conta do “poker”) é perfeitamente compreensível. Isso não os fez menos inteligentes, nem mesmo menos razoáveis. Ambos sabiam bem – como também Russell sabia – que filósofos ocidentais são, antes de tudo, ocidentais, não são monges.

Bem, é certo que Nietzsche até achava que todos os filósofos eram da mesma linhagem de Buda e Cristo, mais (dissimuladamente) mansos do que deveriam ser. Mas, o fato é que entre o folclore que restou do encontro, uma das versões diz que a mansidão só imperou porque o anfitrião Bertrand Russell interveio, e assim Wittgenstein e Popper não chegaram a se machucar.

As versões sobre o evento são contestadas, sendo que as fãs de ambos os contendores ainda hoje se mobilizam para puxar brasa para suas sardinhas. Além disso, essa é uma disputa esquisita, pois ao contrário do que ocorre no esporte, nesse caso surgiram até mesmo os fãs do árbitro. Há os que viram Bertrand Russell no papel de herói do momento que, com sua autoridade, rugiu na sala em favor de Popper, o visitante. Tudo teria ocorrido a partir de um determinado momento da palestra de Popper. Ele estava ali para falar sobre “os problemas da filosofia”, e os estava enumerando. Wittgenstein interveio e de maneira rápida tentou desqualificar todos os problemas, insistindo que eram pseudo-problemas. Wittgenstein gesticulava com um tipo de bengala na mão, que costumava usar, e Popper aproveitou a chance: “Not to threaten visiting lecturers with pokers.” Ainda na versão de Popper, Wittgenstein jogou a bengala no chão e saiu batendo a porta fortemente.

Wittgenstein de fato usava tal bengala e, não raro, quando se entusiasmava, gesticulava agressivamente aquilo, mas sem intenção de ir adiante, é claro. É certo que a maneira que Popper contou o caso o colocou em boa posição; era como se ele tivesse tido presença de espírito e, ao colocar jocosamente Wittgenstein em situação de agressor, desmontou-o. Era a única coisa a fazer, diante da maneira seca de Wittgenstein atuar. Dado que Wittgenstein o desqualificava de modo rápido, sem grandes argumentos, o melhor seria se livrar dele com um tipo de piada, de brincadeira. Usando de um tom grave, Popper teria atraído a atenção de Russell que, conhecendo bem Wittgenstein – e também Popper – preferiu intervir o mais cedo possível.

Os adeptos de Danuza Leão podem ler tudo isso hoje e achar que os filósofos são “mal educados”. Os medíocres podem achar que os filósofos são como que crianças – seres egocêntricos, imaturos. Os medíocres falam de “disputas de egos” para avaliar o encontro de filósofos, mas não possuem a menor idéia de como que um ego filosófico funciona, pois não entendem o material de manuseio do filósofo.

Ambos os filósofos sabiam que o que defendiam era importante – importantíssimo. E de fato ali ocorreu um confronto entre as duas principais maneiras de se compreender a filosofia no mundo contemporâneo. Popper sempre acreditou que podia distinguir ciência de não-ciência de uma maneira filosófica tão rigorosa quanto os critérios que exigia para que uma teoria fosse ciência. Por sua vez, Wittgenstein acreditava – contra o seu passado – que a filosofia não tinha esse poder, uma vez que seu papel, ao menos até então, havia sido o de criar problemas por causa de sua vocação para a desterritorialização da linguagem.

Tantos anos após esse episódio – que rende bastante no campo da literatura de biografias – é interessante notar o quanto esses dois austríacos estão unidos pelo contraste. O destino não os aproximou alterando suas teses por meios de interpretações. Eles se tornaram próximos na medida em que aquilo que defenderam continua tendo o apreço de outros filósofos e um modo especial: cada lado absorveu um pouco do espírito do contendor. E isso não só pelo trabalho deles dois, mas pelo desenvolvimento geral da filosofia.

Entre as inúmeras possibilidades de sentir como é a convivência hoje das teses centrais de Wittgenstein e de Popper, coloco minhas cartas na mesa. Não são todas as cartas, são somente as minhas.

A filosofia caminhou de um modo no século XX que é difícil não ver agora, no final da primeira década do século XXI, que vários entre nós, até mesmo os que fazem filosofia de modo tradicional, temos estado bem menos dispostos a escrever e a falar de um modo fundacionista. Ainda que ninguém mais use o termo pós-moderno, o clima pós-moderno é agora vigente. Saiu da moda para se acomodar em nossa alma. Ou seja, todos nós estamos mais dispostos a tomar nossas teorias filosóficas em um sentido ad hoc. Pode ser que não com o radicalismo de Richard Rorty, mas com muito mais boa vontade do que há trinta anos. Wittgenstein deixou uma contribuição nesse sentido, em especial nas Investigações filosóficas. E penso que é neste clima que a melhor idéia de Popper deveria ser lida. Ou seja, no atacado vamos de Wittgenstein, ainda que no varejo não possamos descartar Popper.

E qual é a melhor idéia de Popper? E o que, especificamente falando, Wittgenstein fez que permite que tal idéia seja redescrita a fim de dar frutos que talvez não pudesse dar na sua velha formulação?

A melhor idéia de Popper é aquela pela qual ele se tornou o filósofo que foi. Ela foi sintetizada no célebre artigo de 1963, “The Science as falsification”, do livro Conjectures and refutations. Nesse curto artigo o núcleo de sua idéia é exposto por meio de sete frases. Ao tentar a síntese dentro da síntese, Popper resumiu as sete frases em uma só, a essência de sua idéia: (1) “O critério do status científico de uma teoria é sua falsificabilidade, ou refutabilidade, ou testabilidade”.  Popper tinha frases melhores que esta no artigo, mas, enfim, escolheu esta como a sua marca.

Uma frase melhor seria esta: (2) “Irrefutabilidade de uma teoria na é uma sua virtude (como as pessoas pensam), mas um vício”. Popper deveria ter ficado nisso. Mas não, ele também escreveu coisas como esta daqui: (3) “uma teoria que não é refutável por algum evento concebível não é científica”.

A frase (3) se agrupa com a frase (1). Ambas querem antes definir ciência que descrever o funcionamento de boas teorias. Ambas caminham segundo uma obsessão do século XIX, a de batizar tudo que se quer ver como válido com o nome de “ciência”. É claro que isso só poderia gerar o que gerou no âmbito do novo positivismo, o do século XX: foi feita a apologia da ciência e, então, houve uma corrida para se encontrar o que era ou não ciência. Isso ganhou um lado ruim, já presente no texto de Popper, pois ele realmente chegou a uma definição. E um batalhão de positivistas (e também os seus adversários!) saiu às ruas com sua régua de falsificabilidade. Ou pior: de posse do juízo de autoridade de quem supostamente já teria aplicado tal régua. E eis que logo a boa idéia de Popper foi substituída por uma espécie de caça às bruxas. E o próprio Popper entrou nisso desde o início. Ele também andou pelas ruas dizendo “isto é ciência, aquilo não é ciência”. E frases assim foram lidas com o sabor do século XIX: “isso nós temos que financiar e idolatrar, aquilo nós temos que descartar e proibir”. “Isso pode, aquilo não pode”.

Podemos redescrever Popper hoje levando em conta o que Wittgenstein disse da filosofia entre os parágrafos 124-133 das Investigações filosóficas. Isso seria claramente uma atitude injusta? Estaríamos agora pegando a bengala de Wittgenstein para, sorrateiramente, dar uma pancada traiçoeira no seu concidadão austríaco? Não creio.

Não há clima atual para jogar fora a idéia de Popper. Ela é polêmica, mas quem a teria de fato abandonado? Quem conseguiria hoje, sendo filósofo, não ter um respeito, e até mesmo admiração por Popper, no específico dessa sua idéia? Não nos pegamos utilizando o seu critério de falsificabilidade para compreendermos filosoficamente as teorias?

Ora, se isso que digo é verdade, se a doutrina de Popper da falsificabilidade se tornou uma espécie de lugar comum filosófico, não vejo perigo algum em construir uma redescrição que mostre como ela convive em um mundo filosófico pós-positivista. Afinal, os elementos de tolerância pós-moderna, como disse, adentraram para nossa vida cotidiana filosófica. Não são poucos entre nós que tem uma admiração pelo espírito wittgensteiniano de tornar a filosofia antes uma atividade de terapia da linguagem que uma profissão de scholars. É claro que os professores de filosofia temem tal coisa. No limite, isso poderia roubar seus empregos. Mas os filósofos autênticos, que de fato comandam a filosofia, não dão muita bola para o fato de poderem ficar desempregados.

Então volto aos parágrafos citados do livro Investigações filosóficas. Estão nesses parágrafos a idéia wittgensteiniana de que os problemas da filosofia não estão postos para serem resolvidos, e sim dissolvidos. Assim, ao fazer filosofia hoje teríamos antes o trabalho da terapia que o da criação de doutrina ou construção de sistema. E a boa terapia wittgensteiniana indica que basta pegar os termos com os quais os filósofos sempre se ocuparam, e trazer tais palavras para os jogos de linguagem em que elas nasceram e faziam sentido – a linguagem corriqueira, ordinária. Agindo assim, veremos que os ditos “problemas filosóficos” não são senão pseudo-problemas. Eles surgiram à medida que as palavras foram retiradas de seus jogos de linguagem corriqueiros e se viram criando um novo mundo semântico, mas um mundo não muito bem feito, onde a semântica parece ficar a meio caminho para poder dar inteligibilidade requerida.

É claro que não vou pedir para que todos acreditem nisso. Uns acreditam e outros não. Mas é interessante notar que Wittgenstein abriu um espaço para o antifundacionismo de um modo diferente do que até então se havia tentado. Abriu caminho para que pudéssemos ver que a filosofia, que dizia ter o monopólio de tirar pessoas da Caverna, só agia assim por ter sido ela própria a construtora da Caverna. Wittgenstein nos deu a chance de podermos rir da filosofia. E, como filósofos, pudemos rir de nós mesmos – o que há de mais salutar na vida.

Bem, se pudermos ver toda e qualquer teoria como narrativas que precisam ser antes interessantes e utilizáveis do que chamadas de ciência, no sentido pomposo e realista que alguns positivistas gostavam de usar,  não teríamos razão alguma para fazer como Popper fez. Não sairíamos pelas ruas chamando o marxismo e o freudismo de pseudo-ciências. Ao mesmo tempo, freudianos e marxistas não precisariam revidar, dizendo que o que faziam era ciência. Simplesmente sairíamos nas ruas a fim de ver como que o marxismo e o freudismo estavam nos dando novas auto-imagens de nós mesmos.

Sendo assim, o critério de Popper seria descritivo, sem se tornar uma definição castradora. Ele nos ensinaria que algumas narrativas são úteis por várias razões e que outras narrativas são úteis por outras várias razões mais uma razão específica: a de que poderiam ser falsificadas.

A palavra “ciência” em geral ser torna “Ciência”, e carrega a palavra Verdade e, junto desta, o perigo de se reintroduzir (acriticamente) a metafísica pela janela após expulsá-la pela porta. Quando falamos que uma teoria é uma narrativa falsificável, ficamos sabendo algo novo sobre tal narrativa. Mas quando falamos que uma teoria é científica, não damos nenhuma informação. O máximo que fazemos é voltar e dizer que falamos isso por causa de que tal teoria é refutável. Essa operação circular é realmente feita pelos positivistas, e isso carrega uma intenção valorativa extrema. Ora, mas não era exatamente a valoração que os positivistas sempre quiseram evitar ao falar de critérios?

É interessante termos a idéia de Popper nas mãos, a de que há narrativas contra a qual podemos imaginar um sem número de contraprovas, e a de que existem narrativas que parecem escapar de nossa mais alta capacidade imaginativa de contraprovas. Mas não há razão para dizer qualquer coisa a mais sobre elas do que aquilo que se pode dizer de narrativas não refutáveis, ou seja, avaliar sua utilidade para o que queremos fazer com elas.  Um exemplo deixa claro isso. Quando digo que “a história do homem é a história da luta de classes” tenho algo que não se presta à falsificação. Quando digo que “a água ferve a cem graus C. em condições específicas de CNPT” tenho algo que me dá chances de imaginar formas para a refutação. Ora, mas após dizer isso eu não tenho que comparar tais frases por suas refutabilidades ou não e, então, dar o batismo “é ciência” ou “não é ciência” às doutrinas correspondentes a tais frases. O que tenho de fazer com elas e ver no que elas vão ser aproveitáveis para o que espero lançar na sociedade, em termos de conversação. Suas utilidades para mim serão diferentes. E saber que uma delas é refutável, também é algo que lhe dá condições de satisfazer alguns requisitos para sua utilização.

Esse modo de ler Popper se diz wittgensteiniano. Sim, foi o que disse. Mas, a rigor, não é. É claro que esse modo de ler Popper e redescrevê-lo é devido a forte inspiração que tenho de uma incorporada forma de pensar de Rorty e Donald Davidson. Para mim, o critério de falsificabilidade é um elemento a mais da maneira pragmatista que temos de tomar as teorias. Aliás, creio que é assim que os próprios homens de ciência de laboratório se enxergam hoje em dia. Nenhum deles deixa de lado o falsificacionismo, mas nenhum deles está preocupado em responder se o que faz é ou não ciência por causa disso; eles estão ocupados em saber como podem usar resultados esperados e resultados não esperados.