Criar uma Loja Virtual Grátis
Free Translation Widget
SOBRE O SITE.
O QUE VOCÊ ACHOU DO SITE?
RAZOAVEL
BOM
ÓTIMO
EXECELENTE
PROFISSIONAL
PÉSSIMO
MUITO RUIM
PREFIRO NÃO COMENTAR
Ver Resultados

Rating: 2.9/5 (1052 votos)




ONLINE
1









 

VOLTAIRE

VOLTAIRE

 

FONTE:http://www.quadrante.com.br/

Voltaire

 
Por Paul Hazard
 
 
 
Apesar de ser considerado um dos principais personagens do Século das Luzes, Voltaire foi uma figura sombria que levava a sua ironia mordaz e a sua crítica tão longe que chegava a contradizer-se. O sorriso muitas vezes entrevisto nos seus escritos não raro escondia uma careta de ódio, ódio esse que o deixava cada vez mais solitário.
 
 
 

Se ele não tivesse existido, teria sido idêntico o caráter do século?

 

Voltaire apôs ao deísmo* a sua marca indelével. Foi ele quem o remodelou; ou, se quisermos usar uma outra metáfora, foi ele quem filtrou a poção; e, ao acabar o seu trabalho, restava apenas um puro licor cristalino. Para o comprovar, basta relermos o livro que constitui um dos manuais do deísmo inglês, Religion of nature delineated de Wollaston; publicada pela primeira vez em 1722, a obra alcançou êxito, tanto no texto original como nas várias traduções. Comparada aos breves trechos voltaireanos, parece não passar de verborréia e ruído. Em vez daquelas longas dissertações, eis que surgem alguns rápidos raciocínios, algumas fórmulas ágeis, tão simples que mesmo uma criança as poderia apreender; são sentenças imperiosas que chegam a ter força de lei.

 

------------------------------------------------------

(*) O deísmo (ou teísmo) é uma corrente racionalista que pretende subordinar a religião à razão – não harmonizá-las –, rejeitando a existência de qualquer revelação sobrenatural. Em conseqüência, um deísta supostamente aceitaria apenas preceitos religiosos racionalmente dedutíveis, como por exemplo a existência de Deus, que pode ser provada racionalmente, mas rejeitaria as religiões em bloco. Essa atitude surgiu na Inglaterra, no século XVII, e de lá espalhou-se pela França e Alemanha (N. do E.).

----------------------------------------------------

 

Foi ele quem insistiu no argumento das causas finais; foi graças a ele que o homem adquiriu o sentimento de gratidão para com o Ser Supremo que, não se contentando em pô-lo no seu justo lugar, ainda lhe deu o prazer:

 

Mortais, vinde a Ele, mas por gratidão;

A natureza, atenta a saciar nossos desejos,

A esse Deus vos chama com a voz do prazer.

Ninguém cantou ainda toda a sua bondade.

Só pelo movimento conduz Ele a matéria:

Mas é pelo prazer que conduz os humanos 1.

 

------------------------------------------------------

(1) Voltaire. Quinto Discurso sobre o Homem, 1739.

----------------------------------------------------

 

Foi ele quem precisou as recusas: acreditemos em Deus, mas recusemos falar da sua natureza, recusemos falar do modo das suas obras. Um grilo, vendo-se em presença de um palácio imperial, reconhece que o edifício se deve a alguém mais poderoso que os grilos; contudo, não é tão louco que vá pronunciar-se acerca desse alguém 2:imitemos a sensatez deste grilo.

 

Quer um Ser desconhecido, por si só existindo,

Tenha tirado há pouco o universo do nada;

Quer tenha criado como eterna a matéria,

Quer ela nade em seu seio, quer longe dela Ele reine;

Quer a alma, esse archote tanta vez tenebroso,

Seja um nosso sentido, quer sem eles subsista;

Vós estais sob a mão desse Ser invisível 3 ...

 

------------------------------------------------

(2) Id., Catecismo chinês. No Dicionário filosófico, 1764.

(3) Id., Poema sobre a lei natural, 1756. Primeira parte, início.

------------------------------------------------

 

Assim, proibiremos a nós próprios raciocínios sobre a alma: que sei eu? E sobre o além: que sei eu? Cada vez que, sobre tais assuntos, pretendemos fazer afirmações, depara-se-nos a mesma impotência, reconhecida como um fato básico inicial.

 

Foi ele quem formulou o Credo da doutrina. Uma página basta para contê-lo; vejamos o Dicionário filosófico, artigo Teísta:

 

“O teísta é um homem firmemente persuadido da existência de um Ser Supremo, tão bom quanto poderoso, que formou todos os seres que existem, vegetativos, sensíveis, dotados de raciocínio; que lhes perpetua a espécie, que pune sem crueldade os crimes e recompensa generosamente as ações virtuosas.

 

“O teísta não sabe como Deus pune, como favorece, como perdoa; pois não é suficientemente temerário para se vangloriar de saber como Deus age; mas sabe que Deus age e é justo. As dúvidas surgidas a propósito da Providência não o abalam na sua fé, pois não são mais que grandes dúvidas, e não provas; submete-se a essa Providência embora dela apenas veja alguns efeitos, alguns aspectos exteriores; e, julgando das coisas que não vê pelas coisas que vê, pensa que essa Providência existe em todos os lugares e em todos os séculos.

 

“Reunido neste princípio com o resto do Universo, não adere a nenhuma das seitas, que se contradizem todas entre si. A sua religião é a mais antiga e a mais duradoura: pois a adoração simples a um Deus precede todos os sistemas do mundo. Fala uma linguagem que todos os povos entendem, embora se não entendam entre eles. Tem irmãos desde Pequim até à Caiena, e conta no número desses seus irmãos todos os sábios. Crê que a religião não consiste nem nas opiniões de uma metafísica ininteligível nem em esquemas vãos, mas na adoração e na justiça. Fazer o bem, eis o seu culto; ser submisso a Deus, eis a sua doutrina. O Maometano grita-lhe: «Ai de ti se não fazes a peregrinação a Meca!» «Infeliz de ti, diz-lhe um franciscano, se não fazes uma viagem a Nossa Senhora de Loreto!» Ele ri de Loreto e de Meca; mas socorre o indigente e defende o oprimido”.

 

Foi ele quem prestou ao deísmo o auxílio da sua arte, ilustrando-o. Se dissermos que nos recusamos a aceitar todo e qualquer antropomorfismo, poucas probabilidades teremos de nos fazermos compreender do comum dos leitores. Mas poderemos diverti-los se escrevermos: “Tenho de contar-vos o que me aconteceu certo dia. Acabava eu de mandar construir um gabinete ao fundo do meu jardim e ouvi uma toupeira discutir com um besouro. «Ora aqui está um belo trabalho», dizia a toupeira, «bem poderosa deve ser a toupeira, que erigiu esta obra». – «Estais a brincar», disse o besouro – «o autor deste edifício foi por certo um besouro genial». Desse momento em diante, decidi nunca mais discutir” 4.

 

Se dissermos que, na nossa opinião, o deísmo tem um valor universal, permaneceremos na abstração; mas seremos concretos, e pitorescos, se dissermos: “Consultei todas as passagens pelas quais fica evidentemente provado que todos aqueles que não habitaram no quarteirão da Sorbonne, como por exemplo os Chineses, os Indianos, os Citas, os Gregos, os Romanos, os Germanos, os Africanos, os Americanos, os brancos, os negros, os amarelos, os vermelhos, os de cabeças encarapinhadas e os de cabelo liso, os queixos barbudos, os queixos imberbes, todos estavam irremediavelmente condenados, como aliás é justo; e que só uma alma atroz e abominável poderia alguma vez pensar que Deus seria capaz de ter piedade de um único indivíduo que fosse, entre toda essa boa gente” 5.

 

----------------------------------------------------

(4) Dicionário filosófico, 1764; Artigo: Deus.

(5) Segunda anedota sobre o Belisário, 1767.

-----------------------------------------------------

 

Foi ele, entre todos, quem fez da verdade o sinônimo da clareza. Filósofo, no sentido de que a sua arte estava impregnada de pensamento, ou no sentido de que, sem cessar, se interrogava a si próprio:

 

O que será o espírito, o espaço e a matéria;

A eternidade, o tempo, a energia, a luz?

Estranhas questões... 6

 

-----------------------------------------------------------

(6) Segundo discurso sobre o Homem, 1739.

-----------------------------------------------------------

 

Filósofo no sentido em que não havia filosofia alguma, próxima ou remota, antiga ou moderna, que não despertasse a sua curiosidade e lhe não parecesse digna de atenção. Mas se entendermos por filósofos os audaciosos que ousam fazer das suas hipóteses uma criação igual à do universo, aqueles que tentam praticar na nossa prisão aberturas dando para o desconhecido e o inaudito, aqueles que nos propõem uma explicação total do mistério, então Voltaire não pertence à tribo.

 

Foi ele quem mais expressamente pronunciou a grande recusa da metafísica. Aproximou-se de Spinoza e logo o recusou: Baruch Spinoza, bem sei que levaste uma vida exemplar, digam o que disserem os teus detratores; bem sei que não foste um ateu, no sentido grosseiro que geralmente se atribui a esse termo; bem sei como te ergueste em vôos vertiginosos. Contudo, recuso-me a seguir-te e renego-te porque não és claro. Leibniz, bem sei que foste um gênio; bem sei que por todo o lado procuraste a harmonia, que em todo o lado viste a continuidade, que nem sequer temeste veres-te a braços com o próprio mal, para o explicares: mas não me agradas e direi mesmo que és um pouco ridículo, que és um pouco charlatão, que não te compreendias a ti próprio; zombo de ti, porque falaste das percepções obscuras, porque as tuas mônadas não são claras. Wolff, tu és volumoso, palavroso, pesado, recuso tomar-te em consideração, embora o príncipe da Prússia te conceda alguma estima, porque não és claro. Mas Locke é simples e claro, e por isso me apoiarei na sabedoria de Locke...

 

Ia tão longe neste caminho, que acabava por deixar de ser coerente, bastando-lhe a transparência de cada uma das peças da sua construção, mesmo que ela não concordasse muito bem com as peças vizinhas. Lockiano, afirmava nada haver de inato na nossa alma: a menos, contudo, que aí existissem disposições inatas, o que voltava a pôr tudo em questão. Acreditava firmemente na virtude de uma regra moral, mas quanto mais se adiantava na sua meditação menos certo se encontrava de que o homem fosse livre; moralidade e fatalidade pareciam-lhe dois princípios igualmente claros; e tanto pior se se conjugavam mal. O Deus desconhecido no qual punha toda a confiança recompensaria os bons e castigaria os maus: mas duvidava de que houvesse uma outra vida, onde os bons seriam recompensados e os maus punidos. Só era verdadeiro o fato que a análise despojava, para lhe deixar apenas a clareza como única característica; “um caos de idéias claras” é ainda a mais justa das definições dadas ao conjunto do seu pensamento.

 

Tal como se sentia incomodado quando se avizinhava das regiões do confuso, do imperceptível, do inconsciente, assim também ignorava as evoluções, os obscuros impulsos do tempo, o esforço do devir. É inteligível aquilo que é fixo: fixidez das línguas, fixidez das espécies, fixidez da natureza. A razão era fixa, nunca tivera outra forma senão a que ele próprio e os seus contemporâneos lhe haviam dado, nunca teria outra; o presente iluminava o passado. Se alguma vez houve duas linguagens incompatíveis, as de Vico* e de Voltaire são-no.

 

-----------------------------------------------------------

(*) Giovanni Battista Vico (1668-1744), filósofo italiano considerado o pai de filosofia da História. Na sua obra mais difundida, Scienza Nuova, propõe a tese de que as civilizações surgem e desaparecem em períodos cíclicos. Praticamente ignorado por seus contemporâneos – demasiado otimistas quanto ao progresso ininterrupto da humanidade – tornou-se muito influente nos séculos XIX e XX (N. do E.).

-----------------------------------------------------------

 

Ao deísmo retirou ele o caráter aristocrático e quase cético que Bolingbroke lhe dera, o caráter poético que Pope * lhe conferira, para o unir intimamente à vida e à ação. Não tinha ilusões sobre a vida; e muitas vezes encarou-a com a sensação pungente da sua imperfeição.

 

-----------------------------------------------------------

(*) Henry Saint John, primeiro conde de Bolingbroke (1678-1751), político e aristocrata inglês, foi um dos mais célebres deístas do seu tempo. Alexander Pope (1688-1744), expoente do classicismo na Inglaterra, foi poeta e tradutor das obras de Homero. Criado numa família católica que resistiu às perseguições por parte da Coroa, acabou por assumir algumas posições deístas, influenciado por Bolingbroke, de quem era amigo (N. do E.).

-----------------------------------------------------------

 

Quid est felicitas? Os inimigos encarniçam-se contra nós, os amigos atraiçoam-nos, as mulheres que amamos enganam-nos ou morrem. É atroz considerar a história do gênero humano; se reunirmos algumas das frases que o autor do Ensaio sobre os costumes utilizou para a descrever, obtemos um requisitório: massacres no Oriente, massacres no Novo Mundo; guerras de toda a espécie e, entre as mais funestas, as guerras da religião. “Será a história das serpentes e dos tigres a que acabo de escrever? Não, é a dos homens. Os tigres e as serpentes não tratam desse modo a sua própria espécie”. – “Há épocas em que a terra inteira não é mais que um teatro de carnificinas, e essas épocas são demasiado freqüentes”. – “A história dos grandes acontecimentos deste mundo não passa da história dos crimes”. – “Tão deplorável é a condição dos homens, que os mais divinos remédios foram transformados em veneno”.

 

Quid est justitia? Os criminosos são recompensados, os justos sofrem; os jovens, as crianças, morrem sem que se possa dizer por quê; os velhos encontram-se na miséria. A desproporção entre os efeitos e as causas contém um gracejo. Vaidade das vaidades.

 

Quid est veritas? Ignorâncias eternas. Os limites do nosso espírito começam onde acaba o nosso nariz; os rios não correm mais depressa para o mar que os homens para o erro. “Pilatos perguntou a Jesus: O que é a verdade? E, feita a pergunta, logo saiu. É triste para o gênero humano que Pilatos tenha saído sem esperar pela resposta; saberíamos então o que é a verdade” 7. De las cosas más seguras, la más segura es dudar. Simplesmente, as dúvidas são tristes. Em resumo, se a natureza lhe não tivesse dado dois antídotos excelentes, o amor pelo trabalho e a alegria, há muito que teria morrido de desespero.

 

---------------------------------------------------

(7) Questões sobre a Enciclopédia, Artigo: Verdade, 1772.

---------------------------------------------------

 

Mas, já que não podemos modificar em nada os males pelos quais não somos responsáveis, atenuemos pelo menos aqueles que a nós próprios causamos; defendamo-nos pela sensatez e pela moderação, aproveitemos mais conscientemente os bens que nos são oferecidos: os requintes da civilização, a independência do espírito. E aqui – o que de modo algum haviam feito os seus predecessores – ele intervém diretamente na direção da vida. Combate a um tempo pelos seus princípios gerais e pelas respectivas aplicações concretas, a propósito das quais se levanta a questão da sua eficácia e valor; considera que não terá cumprido a tarefa que lhe incumbe se não tentar obter uma melhor produção das riquezas, uma administração menos má, leis mais justas; se não salvar os infelizes iniquamente condenados, se lhes não reabilitar a memória. E utiliza um terceiro antídoto: a ação.

 

Foi ele quem quis defrontar Pascal 8.Não apenas de passagem, como faziam os outros, que não se privavam de denunciar nele “um desses moralistas melancólicos que perpetuamente nos censuram a nossa felicidade” 9,mas num duelo sem tréguas. Pascal não morrera dos golpes que lhe haviam vibrado: mas Voltaire matá-lo-ia, seria essa a sua glória. Desafiá-lo-ia na arena, tomando a Europa como espectadora e juiz. Arrastaria Pascal para o terreno, abatê-lo-ia, dar-lhe-ia o golpe de misericórdia. “Vamos, vamos, Pascal, deixa o assunto comigo!” Sabia quão grande Pascal era: tanto melhor; com a sua funda, lançaria por terra esse Golias.

 

---------------------------------------------------

(8)Cartas filosóficas, 1734. Carta XXV, Observações sobre os pensamentos do Sr. Pascal.

(9)Adam Smith, A Teoria dos sentimentos morais 1759. Parte III.

---------------------------------------------------

 

Aproxima-se, saltita, lança-se. Em vão tentaria refrear uma paixão que, de um respeito aparente, vai passar ao insulto. De início, esforça-se por falar com doçura: permitir-se-á apenas emendar alguns Pensamentos, pois estes, todos o sabem, foram deixados num certo estado de imperfeição; prestará pois um serviço ao autor, inclusivamente um serviço à religião, ao emendá-los.

 

Mas é incapaz de manter esta atitude; cada um dos argumentos que aponta o faz estremecer e lhe excita a cólera; já não há vestígios da sua calma aparente. Em breve começa a contradizer palavra por palavra. Isso é contra toda a ordem, diz Pascal; isso é segundo toda a ordem, responde Voltaire. O tolo projeto que Montaigne concebeu de se descrever, diz Pascal; o encantador projeto que Montaigne concebeu de se descrever ingenuamente, como o faz, dizVoltaire.

 

Interpela o seu adversário; como foi possível que um homem como o Sr. Pascal caísse num tão falso lugar comum? Ataca-lhe o estilo, é uma confusão. Ataca as idéias: esta é tão absurda quanto metafísica, aquela é um tanto indecente e pueril, aquela outra é de um fanático. O homem não é nem anjo nem animal, e a infelicidade está em que quem pretende ser anjo cai na animalidade, diz Pascal. Quem pretende reduzir as paixões ao invés de as regularizar pretende ser anjo, diz Voltaire: e, trocista, subentende que Pascal cai na animalidade.

 

Liberta-se pouco a pouco, até atingir o patético, o caráter irredutível da oposição. De um lado, esses Pensamentos que trazem ainda a marca do tormento e do temor em que foram concebidos, esses fragmentos que devem a sua densidade a toda uma experiência humana, a vida libertina, a inquietação, a procura, a doença, a conversão, a ciência e a erudição que vem em socorro da fé; e também a alegria daquele que encontrou enfim, daquele que se lança confiante para os braços de Cristo, daquele que, doravante, detém as certezas eternas. De um lado, o prosélito “que propõe aos seus irmãos a solução que essa experiência dolorosa e triunfante trouxe à sua alma liberta da dúvida. De um lado, o homem que voltou a viver a agonia do Monte das Oliveiras, que subiu a encosta do Gólgota. De um lado uma explicação religiosa do mundo: a miséria que está em nós; a morte que nos chama, quais prisioneiros saindo do calabouço para, cada um por sua vez, sermos degolados; a tara original que nos vicia; a impossibilidade em que estamos de curar ou mesmo atenuar essa perversão que se acoita no mais profundo do nosso ser e, como único recurso, apenas nos deixa a possibilidade de voltarmos a cara para o lado e de nos divertirmos para esquecer. A nossa grandeza, reminiscência e desejo.

 

A única explicação que nos permite resolver esta contradição e explicar este mistério: a religião cristã, a felicidade da nossa condição no momento em que saímos das mãos de Deus, a liberdade de escolha que nos foi dada, a escolha do pecado, a redenção. A única religião que nos garante a verdade porque toma em linha de conta todos os dados do problema; porque é comprovada ao mesmo tempo pela razão e pela intuição; finalmente, porque é confirmada pelas profecias e pelos milagres. Conjunto em que todas as partes se mantêm firmemente; solução que restitui um sentido ao nosso destino.

 

Tudo isto são visões de um “misântropo sublime”, responde, do outro lado, o adversário que se suscitou a si próprio. O sentimento do pecado não passa de mais um preconceito entre todos os outros. Sim, sofremos por vezes; mas essa lei não é tão imperiosa que se torne impossível adoçá-la. Foi-nos concedido um amor próprio para a conservação do nosso ser; esperam-nos delicados prazeres: será que Paris e Londres, cidades opulentas e civilizadas, se assemelham a um calabouço ou a uma ilha deserta? Não há enigma; o homem está no seu justo lugar na ordem da criação; só não é racional quando tenta fugir desse lugar; deve aceitar a sua condição como um fato: o homem sensato não se enforcará por não saber de que modo se vê Deus frente a frente ou por não ser capaz de desvendar o mistério da Trindade. Seria o mesmo que desesperar por não ter quatro pés e duas asas. Não existe qualquer instituto secreto, vestígio da grandeza da nossa primeira condição, que nos leva a procurar o divertimento: há, sim, um instinto, não secreto, que nos leva a juntar-nos aos outros homens, a formar sociedade com eles.

 

Assim, não há necessidade alguma de imaginar uma falta, uma queda; a menos que os infortúnios de um cavalo de carroça nos provem que os cavalos eram, outrora, grandes e gordos e nunca recebiam chicotadas; e que, depois que um deles se lembrou de comer demasiada aveia, todos os seus descendentes foram condenados a puxar carroças. Apostar no absoluto poderia levar-nos a perder tudo. E o que é o absoluto? Só o relativo existe. Numa aposta, apenas alguns eleitos seriam beneficiados; se Deus só tivesse vindo para um pequeno número de pessoas, mais valeria não acreditar em Deus. Muito maior que o Deus dos cristãos é o Deus sem cólera que o universo adora, e a quem apreendemos pelo exercício da razão. Não há lugar, num cérebro bem equilibrado, para as intuições, os arrebatamentos, os êxtases; é absurdo dizer que o coração tem razões que a razão desconhece, pois trata-se de uma contradição nos termos. Não há tradição, a não ser a de um povo grosseiro e imbecil; não existem profecias, nunca houve milagres. Seguros destas convicções, as únicas que a exata medida das forças limitadas do nosso espírito e das realidades da nossa existência nos permitem, compreenderemos o verdadeiro sentido do nosso destino.

 

Desde então deixou de haver escapatória possível. Existem duas famílias de espíritos: era preciso saber a qual se desejava pertencer. De entre duas interpretações da vida, era necessário escolher. Posto que havia luz: as luzes naturais, com Voltaire; as sobrenaturais, com Pascal.

 

*  *  *

 

Dir-se-ia que Voltaire era eternamente jovem. Tinha setenta anos, tinha oitenta anos, e continuava ainda a fazer cabriolas à beira do túmulo. “Sou flexível como uma enguia, vivo como um lagarto, e continuo a trabalhar como um esquilo” 10: o seu caráter permanecia tão flexível, tão vivo como o seu corpo; e a roda continuava a girar. De aspecto, era “magro como a morte e feio como o pecado”: mas nada perdera da mobilidade da sua alma de fogo”. “O Sr. Pigalle, escreve ele próprio, deve vir modelar o meu rosto; mas era preciso que eu tivesse um rosto: mal se lhe adivinha o lugar. Os meus olhos estão enterrados bem três polegadas; as minhas faces são um velho pergaminho colocado em ossos que já nada seguram; os poucos dentes que tinha, perdi-os”.

 

Mas nem por isso deixava de manter a sua força de combatente, a sua vontade de chefe; dirigia os filósofos, pregava-lhes a união, indicava-lhes uma tática. “Era o senhor de Ferney, com foro, dízima, enfeudados, homenagens, feudos, enfiteutas, domínios diretos, e o ómnio de jurisdição alta, média e baixa, e ainda o direito à pena de morte” – do que não estava pouco orgulhoso –, mas orgulhava-se, principalmente, por se sentir um dos Príncipes da Europa. Não escrevia uma carta que não passasse de mão em mão, uma página que não agisse sobre os espíritos, um livro que se não tornasse célebre. Gabava-se de uma “mão de quatro reis”, certo de ganhar o seu jogo contra o tempo; todos os viajantes consideravam um dever irem render-lhe homenagem; os pais levavam-lhe os filhos para que estes pudessem contar um dia que haviam tido a honra de contemplar o grande homem; se alguém faltava à peregrinação, se o conde de Falkenstein, nome sob o qual se ocultava nada menos que o futuro Imperador, José II, passava por França sem o visitar, irritava-se como perante uma irreverência. Quem alguma vez esteve mais certo de ser imortal?

 

-----------------------------------------------

(10) Carta de Voltaire ao conde de Argental, 26 de outubro de 1739.

-----------------------------------------------

 

Operava-se, porém, um fenômeno de cristalização no seu espírito. Tem-se justamente notado 11 que, por volta de 1760, ele procedera a um exame de consciência, cujo resultado não fora modificar-se, mas sim endurecer-se. Fechava-se, concentrava-se. Recusava-se a ouvir o apelo ao sentimento lançado por Richardson. Já não seguia a transformação da mentalidade inglesa de que, trinta anos antes, fora o iniciador; não deu a menor atenção ao movimento wesleyano *.

 

-----------------------------------------------

(*) John Wesley (1703-1791), pregador e fundador do movimento metodista, origem da atual igreja metodista. O metodismo baseia a sua espiritualidade nos sentimentos piedosos que a religião desperta em cada fiel. Nesse sentido, tem algo de réplica ao racionalismo (N. do E.).

-----------------------------------------------

 

O próprio Shakespeare deixava de ser um bárbaro de gênio para se tornar apenas um bárbaro. Dante, que ele considerara composto de materiais grosseiros onde, no entanto, brilhavam o ouro e os diamantes, não passava já de uma espécie de louco. Os italianos contemporâneos pareciam-lhe reduzidos a alguns escritores de mérito que tinham o bom gosto de pensar como ele, por exemplo, Bettinelli; e a alguns autores imbecis que caíam no erro de o criticar, como Baretti, que lhe censurava a mudança de idéias acerca de Shakespeare. Não dava a menor importância ao esforço da Itália, a qual procurava o caminho que deveria conduzi-la às ressurreições. E o despertar da literatura alemã permanecia totalmente desconhecido para ele.

 

Ao mesmo tempo, a sua oposição ao cristianismo acentuava-se, exasperava-se, tornava-se idéia fixa. Aquele espírito tão encantador, tão delicado, tão sóbrio, era apenas violência e exagero logo que, como ele dizia, se tratava de esmagar “a Infame” [a Igreja]. Fosse porque o triunfo definitivo da sua causa, triunfo que acreditava estar próximo, o tivesse encorajado e excitado; fosse porque a resistência obstinada, que verificava existir ainda, o tivesse irritado; fosse porque essa resistência se revelasse mais profunda, no fundo de si próprio e contra si próprio, de tal modo que, tendo declarado todas as noites que o inimigo estava irremediavelmente vencido, experimentava todas as manhãs a necessidade de recomeçar o combate para o vencer: o fato é que levou até o furor a hostilidade que nele existia desde a juventude e que, agora, se tornava mania.

 

Do centro produtor de Ferney, mais temível para os crentes que os de Amsterdam, Londres, Paris ou Berlim, partiam incansavelmente panfletos onde a um tempo transpareciam o gênio do artista e o zelo do sectário. Exprimia a sua negação, não sob dez, nem cem, mas mil formas diferentes: era assim que a obsessão, característica geral do século, se transformava nele em modo de ser; não queria, não podia já libertar-se dela. A Bíblia não tinha grandiosidade nem beleza; o Evangelho só trouxera infelicidade à terra; a Igreja, na sua totalidade e sem exceção, era corrupção ou loucura; de todos os que haviam professado a fé, não havia um único que não fosse fanático; os mais puros, os mais nobres, arrastava-os ele pela lama; o próprio São Francisco de Assis era despojado da sua doce auréola e transformava-se num pobre louco.

 

Simplificação caricatural; vontade de nunca entrar nos raciocínios do adversário, de os passar em silêncio ou de os desfigurar; incansável repetição: tais eram alguns dos seus processos. Quando lemos um ou outro dos sermões, dos catecismos, dos discursos, dos diálogos, dos contos, que ele lançava às mãos cheias pelo mundo, admiramos uma linguagem que parece cada vez mais fácil, um pitoresco cada vez mais gracioso, um estilo cada vez mais próximo do natural; mas quando lemos dez, ou vinte, descobrimos a mecânica do propagandista.

 

Voltaire é o iniciador desse estilo baixo, indigno dele, que consiste em dizer que não devemos ter fé pelo fato de se contar nos Livros Sagrados que o demônio transportou Cristo ao cimo de uma montanha de onde lhe mostrou todos os reinos da terra, quando é impossível ver todos os reinos da terra do cimo de uma montanha; ou ainda porque a Igreja pede aos fiéis que façam jejum à sexta-feira. Se necessário, ia até à ignomínia, da qual seria fácil dar exemplos se estes não fossem imundos. Era infiel, ao degradar-se assim, à memória do seu mestre Bayle *, o qual não se mostrara menos hostil à tradição, à autoridade, à fé, mas que sempre mantivera a grandeza.

 

---------------------------------------------------

(*) Pierre Bayle (1647-1706), escritor francês. O seu Dictionnaire historique et critique (1697) teve muita influência sobre Voltaire e os outros enciclopedistas (N. do E.).

---------------------------------------------------

 

“Quantas personagens diferentes interpretou ele para nos instruir?” dizia Mably. “Quase nunca aparecendo sob o seu nome, tão depressa é um teólogo, como logo um filósofo, um “chinês”, um capelão do rei da Prússia, um indiano, um ateu, um deísta; o que há que ele não tenha sido? Escreve para todos os espíritos, e mesmo para aqueles que se , deixam convencer melhor por um gracejo ou um dichote que por um raciocínio” 12. O fato é que era essa a sua arma favorita, o sarcasmo; que a manejava de tal maneira que ninguém o igualava, ninguém talvez o igualará jamais; que dela se servia, com toda a razão, para combater os exageros; e que acabava por dela se servir indistintamente contra todos os objetivos, e não apenas contra os ídolos, mas também contra os valores cuja desaparição avilta e empobrece a humanidade, o arrebatamento, o fervor. Legava esse sarcasmo a uma raça inábil e grosseira que iria adquirir o hábito de rir perante tudo o que não compreendia.

 

---------------------------------------------------

(12) Da evolução, progressos e limites da razão. Obras, t. XV, p. 7.

---------------------------------------------------

 

Voltaire tomava um aspecto sobre-humano; era – foi Diderot quem lhe chamou assim – o Anti-Cristo. Mas, neste ponto, uma parte da Europa já não o seguia, apenas vendo nele “o gênio do ódio”. E não apenas os que iam pedir ao coração prazeres que a razão lhes recusava; não apenas os seus inimigos, que eram inúmeros: eram inclusivamente alguns dos seus amigos que o abandonavam com um sentimento de temor. Dentre os detentores das luzes, havia um Genovesi que o censurava por excitar entre os homens uma violência contrária à máxima que, por seu lado, preconizava: amai-vos uns aos outros; um Alessandro Verri falava desses filósofos franceses que, se pudessem, instituiriam a Inquisição contra aqueles que não eram da sua opinião; um Nicolai, um Mendelssohn, um August Wilhelm Schlegel, um Johann August Eberhardt, consideravam que ele poderia deitar a sua causa a perder; Voltaire acabava por lhes causar medo *.

 

---------------------------------------------------

(*) Antonio Genovesi (1712-1769), filósofo italiano, propôs uma filosofia que seria o meio termo entre o empirismo e o idealismo. Alessandro Verri (1741-1816), homem de letras italiano, tradutor de Shakespeare e de outros autores importantes, escreveu livros que fizeram sucesso na sua época. No seu título Noites romanas no sepulcro dos Cipiões, contrasta a violência do paganismo com a paz do cristianismo. Christoph Friedrich Nicolai (1733-1811) foi um editor e escritor alemão, difusor da literatura inglesa no seu país. Ficou mais célebre, contudo, por julgar ridículos os ideais de alguns grandes escritores do seu tempo, entre eles Goethe. Moses Mendelssohn (1729-1786) foi um filósofo alemão. Judeu, foi um dos mais importantes pensadores do período conhecido como Haskalah, o iluminismo judeu. Propunha, entre outras coisas, a  secularização dos judeus e a diluição do judaísmo tradicional. Foi avô do compositor Felix Mendelssohn. August Wilhelm Schlegel (1767-1845), erudito alemão, traduziu autores líricos de diversos idiomas para o alemão, entre eles Shakespeare. Por fim,Johann August Eberhardt  (1739-1809) foi um filósofo e teólogo alemão. Tornou-se célebre pelo seu Dicionário de Sinônimos (N. do E.).

---------------------------------------------------

 

D’Alembert sonhava vir um dia a estabelecer em frente da velha casa encimada pela cruz, onde os homens tinham o costume de se refugiar contra os males da vida, um outro edifício. Teria mostrado as respectivas vantagens, teria feito valer à lógica do seu plano, o bem-estar de que fruiriam os que o visitassem: posto isto, a escolha permaneceria livre; entraria, quer numa, quer noutra, quem o desejasse; ninguém lançaria o anátema sobre o passado, não haveria lutas, cada um seguiria a decisão da sua consciência respeitando a consciência de outrem. Sem dúvida que era demasiado belo; uma tal atitude encontrava-se demasiado afastada dos hábitos da nossa espécie. O deísmo francês, indo reunir-se para além de Pope ao de Toland e de Colins, era essencialmente agressivo.

 

Do fato de haver nascido no século XVIII e de se ter seguidamente perpetuado uma raça de homens que adotou o anticlericalismo como único alimento espiritual, que fez do anticlericalismo o seu programa único, que acreditou ser o anticlericalismo suficiente para reformar os governos, tornar as sociedades perfeitas e conduzir à felicidade; desse fato há muitos responsáveis, e nem todos se encontram no campo dos enciclopedistas. Mas nenhum deles é tão responsável como Voltaire.